Jornal i
Nelson d’Aires
Rosa Ramos
Protegeu ministros e prendeu criminosos. Ao serviço da
PSP, viu gente enforcada e corpos decapitados. Durante anos trabalhou
semanas a fio sem folgar e perdeu a conta às directas que fez em
esquadras. Até que, quando estava prestes a fazer 20 anos de carreira,
decidiu matar-se. António tinha 40 anos e sentia-se “inútil”. Sobreviveu
e nunca ninguém na polícia lhe ofereceu ajuda.
“Tinha 22 anos quando entrei para a PSP. Antes disso ainda fui militar,
mas tive sempre a ideia de ser polícia. Na escola já mostrava uma certa
tendência para proteger os mais fracos e não gostava nada de injustiças.
Na minha cabeça os polícias existiam para isso: proteger, ajudar e
socorrer.
Não precisei de muitos anos de PSP para perceber que afinal a realidade
era outra. O meu primeiro comandante, no final da década de 1980, era um
oficial já com uma certa idade que favorecia os comerciantes da zona. E
nós tínhamos todos de ser coniventes com aquilo, até porque ele fazia
questão de nos avisar que não podíamos “romper o capote” – era a
expressão usada. Se alguém discordasse do sistema, não durava ali muito
tempo e aquilo fazia-me confusão.
À medida que vamos avançando no serviço, a forma de ver a vida vai
mudando. Chegamos a casa e não conseguimos desligar e falar de outra
coisa que não o trabalho. Às vezes está-se na esquadra tranquilamente e
de repente muda tudo: cinco minutos depois já se está na rua, numa
situação de perigo e com uma arma apontada. É uma adrenalina complicada.
Depois regressa-se à esquadra e são horas a fio a escrever expediente.
Perdia a conta às directas que fiz em trabalho. Antigamente só folgava
de 15 em 15 dias e ainda hoje é complicado ter folgas. Muitas vezes o
comandante avisa-nos de véspera que afinal não podemos ir de
fim-de-semana porque há uma operação qualquer. Não podemos recusar –
senão ficamos marcados – e quando se dá conta já não se descansa há dez
dias seguidos. Isto para não falar dos turnos e das vezes que temos de
trabalhar 24 horas seguidas.
Na polícia lidamos com coisas com que mais ninguém na sociedade quer
lidar. Em mais de 30 anos de carreira já vi quase tudo. Já entrei em
apartamentos e dei de caras com gente enforcada. Já tive de ir buscar
uma cabeça projectada, num acidente de automóvel, a mais de 50 metros
metros de distância do corpo e a seguir tive de ir dar a notícia à viúva
e aos dois filhos pequeninos, que desataram a chorar. Uma vez entrou-me
pela esquadra dentro, a meio da noite, uma mulher com uma sobrinha de
três anos pela mão, que tinha acabado de ser violada pelo tio, e na
altura eu tinha uma filha com essa idade.
Lidamos com coisas que nos
marcam o resto da vida. Ainda não estava há um ano na polícia e não
morri por milagre. Houve um assalto muito grande e, por descoordenação
das chefias, correu tudo mal. Eu estava atrás de um muro com outros dois
polícias e deu-se uma explosão muito grande. Tive a certeza absoluta
que ia morrer e os meus ouvidos estouraram. Quando recuperei a
consciência estava debaixo dos escombros e um colega meu, que tinha
entrado no edifício, morreu. Durante muito tempo não consegui dormir.
Quando fechava os olhos e estava a pegar no sono, dava saltos na cama
porque ouvia o barulho da explosão e os gritos. Quando foi da menina
violada, sonhava com isso constantemente e passei a olhar para a minha
filha de maneira diferente, com alguma angústia. Também sonhei meses a
fio com a cabeça e o corpo decapitado no acidente e o choro das crianças
quando souberam que o pai não ia voltar. E estas coisas não se
partilham na polícia. Com ninguém. Porque se uma pessoa se queixa ou
fala no assunto, o que ouve, sobretudo das chefias – que supostamente
deviam apoiar os seus homens –, são coisas do género “você quando veio
para cá já sabia que era assim” ou “a porta da rua é a serventia da
casa”. Cheguei a ouvir isso a comandantes quando dava a entender que
alguma coisa não estava bem.
Durante 20 anos não parei em casa. Ingressei num dos corpos especiais
da polícia e às vezes estava aos 15 e aos 20 dias fora, a viajar pelo
país. Não vi os meus filhos crescer. Só ia a casa de vez em quando e
quando aparecia tinha de dormir para poder voltar ao trabalho. É por
isso que muitos polícias se divorciam. Poucas mulheres aguentam.
Felizmente tive sorte. A minha mulher nunca me abandonou, apesar de eu a
ter abandonado tantas vezes. Muitas vezes não conseguia sequer falar
com o meu filho ao telefone, por causa dos horários trocados. Ele tem 30
e tal anos e ainda se lembra de eu me despedir dele antes de sair para o
trabalho e de lhe dizer: “Agora vais ser o homem da casa e cuidar da
tua mãe.” [Silêncio.]
A dada altura o ritmo era tão intenso que pensei desistir do corpo
especial e voltar à esquadra, mas ia ganhar menos e entretanto tínhamos
comprado casa. O ordenado não chegava. Essa é outra questão: ganha-se
mal para aquilo que se faz e hoje em dia tem de se andar preocupado e a
fazer contas de cabeça para pagar o que é preciso. Durante anos tive um
part-time em segredo para pagar as contas.
Estar na polícia foi piorando a minha maneira de ver a vida e a minha
cabeça. A partir dos 38 anos, mais ou menos, comecei a andar muito
ansioso e não tinha vontade de fazer nada. Há muitas coisas de que não
me lembro dessa altura, mas a minha mulher conta que estive meses sem
sair do sofá. Os meus filhos falavam comigo e eu não lhes respondia. Ela
falava comigo e eu gritava que me deixasse em paz. Se houve algum
acontecimento que pudesse ter desencadeado isso? Não. Foi o acumular de
anos e anos de noites mal dormidas e em branco, de tensão, de
experiências de trauma, de stresse com a chefia. Estive dois anos de
baixa e fui acompanhado por um médico de clínica geral que me ia
receitando sertralina. A minha mulher teve de arranjar mais um emprego
para aguentarmos o barco.
Até que um dia – e felizmente não o fiz de forma eficaz – achei que
podia resolver tudo de outra maneira. Tinha 40 anos, estava quase a
fazer 20 de polícia, e sentia-me completamente inútil. Fui perdendo o
amor-próprio e sentia que ninguém se preocupava comigo ou queria saber.
Programei tudo com dias de antecedência... estas coisas programam-se
sempre em detalhe. Assegurei-me de que os miúdos estavam na escola e
deixei a minha mulher sair para o trabalho. Depois tomei os comprimidos.
O que aconteceu a seguir foi... não sei... talvez a mão de Deus. A
minha mulher deu pela falta de uns papéis importantes e teve de voltar a
casa. Eu estava no chão já quase sem sentidos, mas a ambulância ainda
veio a tempo. Estive no hospital e o médico de clínica geral mandou-me
para um psiquiatra, que me acompanhou durante dois anos. Sempre fora da
PSP, porque os médicos da polícia nunca me inspiraram confiança. Preferi
pagar tudo do meu bolso e não foi fácil, porque estava de baixa e
recebia pouco. O gabinete de psicologia... o chefe daquilo recebe o aval
do director nacional, e claro que deve haver troca de informações.
Como fui parar ao hospital, toda a gente soube do que aconteceu. Na
polícia o ambiente é muito masculinizado e feito de homens que têm de
ser fortes ou mostrar que o são. E a tendência quando alguém está com
uma depressão é pensar: “Olha, aquele está maluco.” O psiquiatra dizia
que, além de stresse pós-traumático resultante de situações de trabalho,
evidenciava muitas marcas de maus- -tratos por parte das chefias.
Entretanto tinha de me apresentar na junta médica da PSP para renovar
a baixa, com o relatório do psiquiatra. Ele passava-me a baixa sempre
para mais 30 dias, mas o responsável pela junta – que era um comandante
da polícia e não percebia nada de medicina – nunca me autorizava os 30
dias. Só me dava 15 dias de cada vez e dizia que era para me obrigar a
voltar lá. Aquilo era uma tortura e eu já estava a passar tão mal! Além
disso tinha de fazer 150 quilómetros para poder apresentar-me lá. Estive
dois anos assim. Nunca ninguém me ofereceu apoio e nunca nenhum
comandante – eles estão sempre a mudar – me telefonou a perguntar o que
se passava comigo ou se poderiam ajudar. Nunca, nem a seguir à tentativa
de suicídio. E isso era o pior... Sentia--me completamente invisível e
abandonado pela instituição pela qual tinha dado tudo na vida: o meu
tempo, a minha saúde. Curiosamente, nunca me tiraram a arma de serviço. A
minha sorte foi que costumava deixá-la num armário no trabalho, porque
quando a gente pensa em matar-se agarra naquilo que está mais à mão.
Voltei ao serviço há um ano e pouco. Mais uma vez, nem uma palavra do
comandante – que por acaso no dia em que eu cheguei fez questão de
frisar que era licenciado e doutor. As pessoas não calculam o que são as
chefias intermédias actuais na PSP. Homens com 20 ou 30 anos de
experiência são comandados por miúdos com 22 ou 23 anos acabados de sair
do instituto e que não sabem nada da vida nem da profissão. Talvez por
insegurança, tornam-se autoritários e severos. Dou um exemplo: há pouco
tempo um colega meu foi chamado ao gabinete do comandante, que, do nada,
lhe anunciou que tinha até sexta-feira para meter o papel com um pedido
de transferência senão corria com ele. Só porque sim. Isto acontece
todos os dias na polícia. Há comandantes que telefonam aos polícias que
estão de folga a exigir que se apresentem ao trabalho no dia a seguir e
ai de quem mostrar má vontade. A arrogância é permanente em alguns
locais de trabalho e uma pessoa tem de se calar senão tem a vida num
inferno. Os amigos do comandante, geralmente miúdos da mesma idade com
quem saem à noite, são favorecidos em tudo nas folgas de compensação e
nos gratificados. Uma pessoa, especialmente com a minha idade, olha para
isto tudo e sente-se completamente inútil. É como se não valêssemos
nada e como se a carreira que fizemos não valesse nada.
Outro grande problema é que os polícias são avaliados em função de
objectivos. Tem-se melhor nota do comandante se se passar mais multas ou
pelo número de detenções. Eu não concordo com isso; prendo se tiver de
prender. E vejo os miúdos mais novos permanentemente ansiosos e nervosos
porque têm de mostrar serviço para o comandante lhes dar boa nota.
Entretanto, e como já tenho a idade, meti os papéis para a
pré-aposentação. Só que há dias soube de um novo problema: parece que
agora, por causa da entrada em vigor do novo estatuto, os pedidos já
feitos caducaram e é preciso repetir o processo em Janeiro – todos os
polícias aos mesmo tempo, sem saber quem passa à frente de quem. São
estas coisas que moem e que não fazem sentido na PSP. Estou cansado da
polícia.”
Concurso Inspetor PJ Policia Judiciária
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Aviso (extrato) n.º 29035/2024/2 - Diário da República n.º 249/2024, Série
II de 2024-12-24
Justiça - Polícia Judiciária
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