24/10/2010

Polícia e Cavalheiro

Um dia na vida de João Cavalheiro, 30 anos, agente da PSP natural de Viana do Castelo e destacado em Lisboa 

A pronúncia do Norte não vem arrumada na mala da roupa nem é prenúncio de nada – ao contrário do que cantava a música dos GNR – a caminho de Lisboa. Se alguma coisa significar a distância é o vínculo à farda da PSP que João Cavalheiro veste sete dias por semana em cada turno de seis horas.
A migração não acrescentou dinheiro à carteira – tão-pouco ajudou à estabilidade familiar – mas justifica a vontade de trabalhar na polícia, sonho tão antigo como os bancos da escola de Viana do Castelo, terra onde cresceu e casou – e onde espera ver os filhos nascer assim haja oportunidade de regresso.
A DORMIR PASSA RÁPIDO
Não há nada de ‘CSI’ ou companhia na vida de Cavalheiro. A começar pelo transporte. É meio dia e meia hora e nem sinal da "carreira" que o traz para a capital do País, onde está destacado há quatro anos – numa altura em que a PSP tem estado debaixo dos holofotes mediáticos. Mais tarde Cavalheiro há-de confessar que a viagem de cinco horas e meia é suportada "a dormir, quer para cá, quer para lá, para passar mais rápido".
É tarefa a que se dedica sem grande dificuldade, daí os olhos semicerrados com que nos recebe à hora de almoço de uma quinta-feira, quando faltam seis horas para começar o ‘giro’ nas ruas de Benfica, no carro-patrulha da esquadra da zona, e outras seis passaram desde que a mulher o deixou no autocarro e lhe disse adeus por mais sete dias. A sms que envia da rodoviária não ocupa muitos caracteres: ‘Já cheguei’, escreve sempre.
"Infelizmente", Diana Cavalheiro, que conheceu "através de amigos comuns", estava de folga no supermercado Ponto Verde e não puderam passar o dia juntos dada a escala de trabalho que o esperava a 380 quilómetros.
Ao contrário da pronúncia, a ‘marmita’ tem lugar cativo na mala vermelha. Bem acomodada em cima da roupa para 15 dias – "trago sempre de sobra para o caso de ter mais serviço" – está a "tupperware com o almoço que a minha mulher me mandou" e que com sorte, ou com falta de apetite, chegou mesmo para o jantar. "Trago febras e arroz, mas ela não faz de propósito, é o que faz lá para casa". A carteira agradece na mesma o empenho da cara-metade.
"É uma forma de poupar, mas nos outros dias também não vou a sítios caros – costumo ir ao Pingo Doce comprar a comida já pronta, bananas e pão; ao restaurante Franguinho e também ao McDonald’s". Porque o ordenado do agente não esbanja euros numa altura em que as vacas estão magras para a maioria das profissões – os cerca de 900 euros que recebe por mês são difíceis de esticar. Vale-lhe o tempo frio, "porque no Verão tem de ser comida que não se estrague" – o que limita o leque de possibilidades. A roupa é igualmente preparada por Diana, na véspera de partir para mais uma semana.
"As mulheres têm mais jeito para deixar tudo dobradinho". A timidez desvenda que está pouco habituado a revelar a logística familiar que passa mais pelas mãos da mulher do que pelas dele. Cavalheiro é homem de poucas palavras dentro e fora da esquadra – a sugestão de que partilha confidências com o colega de quarto fá-lo abanar a cabeça. "Para as saudades tenho o telemóvel. Com o meu colega falo do dia de trabalho. Ele não é casado, por isso tem uma vivência diferente".
O agente também não gosta de futebol, "apesar de simpatizar com o Benfica", por isso não é na bola que o encontramos em conversa de café. Entretêm-no jogos de computador e filmes armazenados no portátil para quando a jornada acaba. "O meu preferido é ‘A Vida é Bela’ e não tem violência nem polícias. Se choro a ver? Não, mas minha mulher sim". Na televisão, o ‘Quem Quer Ser Milionário’ afasta-lhe o sono do sofá, como também acontece com a série "‘CSI’, que tem muita acção embora, felizmente, a realidade não seja assim".
TRABALHAR E POUPAR
Cavalheiro não se demora em conversas à chegada à Divisão – a pressa de chegar ao quarto é muita. "Tem duas camas e uma casa de banho. Costuma estar desarrumado". A falta de privacidade não impede o espaço de granjear preferências em hora de lazer. "Quando não estou a ver filmes ando nos sites de leilões e de compra e venda de carros, mas é só para entreter". O Saxo "fraquito" está na garagem "da vivendita, em Viana, para não se estragar" e poupar na gasolina.
Encostada a mala a um canto do quarto acanhado, ruma à sala de refeições onde o microondas requenta o almoço depois das curvas da viagem. Quando Cavalheiro começou a trabalhar na PSP instalou-se na Divisão por 25 euros/mês. Um ano depois viu-se obrigado a ceder lugar a novos agentes, tanto que nos dois anos seguintes passou por três apartamentos antes de conseguir regressar. "Pagava cerca de 130 euros, mais água, luz e gás, era caro. E também partilhava quarto com colegas, por isso não compensava".
Arredada a privacidade, nunca é a mulher que o visita. "Mesmo que só tenha um dia de folga não deixo de ir ao Norte e até podia estar no Algarve que ia com a mesma frequência. É lá que estão as minhas coisas". É lá também que espera ver crescer uma horta "no futuro, quando houver dinheiro". Muito do que é dito evoca em quem ouve os emigrantes portugueses lá fora: "Estou aqui para trabalhar. Trabalhar e poupar. Fui eu que escolhi assim por isso não me posso queixar de nada, é a minha vida".
A equação casa-trabalho, trabalho-casa não lhe é alheia, com a diferença de que dorme no sítio onde trabalha. Daí que da Lisboa onde aterrou pouco saiba.
"Só conheço Benfica [onde faz as ronda de trabalho] e a rodoviária. Destes sítios podem-me perguntar as ruas todas, do resto não". Percorrer o mapa da capital quando o tempo é livre de compromissos está fora de questão. "Gasta-se muita gasolina para ver a cidade. E se for de transportes só fico a conhecer as estações, não vale a pena".
Não desconhece o sabor dos pastéis de Belém, as Docas e os Jerónimos, mas não são sítios a que pondere voltar. Nas últimas férias elegeu para descanso a cidade onde nasceu e só na lua-de-mel se aventurou para lá da fronteira. "Fui a Tenerife porque é parecido com Viana, tem praia, campo e animação. Se a minha terra tem tudo para quê ir para fora gastar?"
A adaptação à capital, onde nunca se imaginara a morar, não foi tão fácil como a vontade de vestir esta pele. "É 180º diferente, não há comparação. Lá é calma e sossego, aqui as pessoas andam sempre com pressa. Mas o que é certo é que muitas vêm de lá de cima para ganhar a vida, tal como eu, se bem que lá até podia estar a ganhar mais". Ele que antes da farda tinha um emprego estável, numa brigada da autarquia, tal como o pai – "andava na rua, abria e fechava buracos, punha tubos; era mais desgaste físico, na polícia é mais psicológico".
Estava a pisar o limite de idade, 26 anos, quando decidiu arriscar o sonho de criança. "Quando fui buscar o ingresso foi a primeira vez que entrei numa esquadra, nunca tinha tido problemas com a lei". À mulher prefere não contar os dias "para não a preocupar. Tive alguns sustos, nada de mais, mas ela não sabe. Se bem que nunca fui agredido e graças a Deus nunca tive de disparar a arma." Apesar da invocação católica não é praticante. "Só vou a missas nos casamentos".
RESOLVER OCORRÊNCIAS
Não se atreve a fazer comparações de feitio entre lisboetas e nortenhos para não atiçar rivalidades: "Como em Lisboa só falo com as pessoas nas ocorrências, elas estão sempre alteradas por isso não dá para ver bem. E pronto". O ponto final avisa que o começo de turno está próximo. O relógio marca as 18h00, a fome não ameaça mas ainda assim tem de jantar. Voltam as febras à mesa da ‘messe’ antes do banho e troca de roupa.
As fardas não lhe são estranhas – já vestiu a dos bombeiros voluntários no passado. "São duas profissões que têm riscos mas nos bombeiros tive mais situações complicadas. Não me considero um herói, simplesmente gosto de resolver as ocorrências". A primeira da noite não exige sirenes – "é uma abertura de porta. Temos de ir confirmar se a pessoa mora mesmo na casa". À falta de papel, Cavalheiro escreve a morada ditada na palma da mão. O café no snack-bar Flor da Tília, com três colegas, ajudou a afastar o sono que poderia vir com a madrugada.
O carro passeia-se pelos becos de Benfica enquanto o rádio continua a debitar um alfabeto indecifrável a estranhos, mas a noite segue tranquila. "Isto hoje vai ser calmo", anuncia. O telefone apressa-se a contrariá-lo. "Parece que está a haver consumo de estupefacientes numa casa abandonada". O aparato revelou-se no local "falsa chamada, falso alarme", depois de uma investida ao último andar de um prédio de realojamento social.
De regresso à esquadra, os únicos civis são da Domingo e um casal alcoolizado que não se aguenta nas cadeiras. É 01h00. Seis horas depois o despertador tratará de interromper o descanso para mais um recomeço. Para o ano, "quem sabe" estará no Porto, mais perto de casa, a aumentar a prole. Enquanto a distância não encurta, a rodoviária é palco de partidas e chegadas. À ida para Viana, troque-se o nome da visada e a banda sonora pode bem ser dos Xutos & Pontapés: ‘E vou correndo para ti, Maria’.
A TROPA HABITUOU-OS À DISTÂNCIA
Cavalheiro não herdou de ninguém a vocação para a farda. "Se bem que a minha mãe diz que o meu avô foi da polícia, mas não sei se foi polícia polícia ou polícia militar". Cavalheiro coça a cabeça mas não desarma. Quando disse aos pais que sonhava com a PSP, não o tentaram conter: ‘se queres ir, vai’ – disseram-lhe.
A mulher, com quem casou já depois de migrar para Lisboa, terá dito coisa igual. "Já estávamos habituados porque quando eu fui para a tropa obrigatória já namorávamos. Foram seis meses por isso estamos habituados a lidar com esta distância".
NOTAS
SALÁRIO
O ordenado sem descontos é 789 euros/mês mais suplementos: serviço, patrulha, turno piquete (215 euros).
FARDA
Os artigos da farda cuja aquisição é obrigatória custam, no total, cerca de 500 euros. Alguns são de desgaste rápido.
PORTARIA
Farda da PSP está a ser renovada. Já se pode usar gorros em vez de bonés. Um boné custa 38,50 euros.
SUBSÍDIO
Comparticipação anual do fardamento começa a ser paga este mês às prestações, num total de 150 euros.
EFECTIVO
O efectivo da Polícia de Segurança Pública é maioritariamente masculino: 92,9 por cento são homens.
IDADE
A idade média do efectivo policial masculino é de 39,3 e a do efectivo feminino situa-se nos 38,8 anos. 

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