05/04/2010

Suspeitas de favorecimento

Prescrição de infracções terão beneficiado o comissário porta-voz da PSP

Há processos por infracção ao Código de Estrada que ficam retidos na gaveta da Divisão de Trânsito da Polícia de Segurança Pública (PSP) até prescreverem, acabando arquivados sem daí resultar a cobrança de coimas e a aplicação de sanções acessórias. Em causa estão disparidades na cobrança do cumprimento das normas e da legalidade democrática, a favor de terceiros com cargos, estatutos ou posições sociais influentes.

A prescrição dos procedimentos contra-ordenacionais é um assunto há muito falado, mas só agora é tornado público por alegadamente ter favorecido um oficial da PSP. A indignação partiu de quadros inconformados do Comando da Madeira.

O caso denunciado por carta anónima chegou à nossa redacção em meados de Fevereiro e põe a descoberto infracções ao Código de Estrada que, embora fossem registadas pelos agentes e dessem entrada na Divisão de Trânsito, não seguiram os trâmites processuais previstos na lei. Um dos pretensos beneficiados foi o comissário Roberto Fernandes, actual porta-voz da PSP e adjunto da Divisão Policial do Funchal. Mas há outros nomes influentes dentro e fora da estrutura policial que são apontados neste conluio, numa rede de tráfico de influências. Contudo, isso é algo que não conseguimos confirmar, pois só uma auditoria ou inspecção pelo IGAI aos procedimentos contra-ordenacionais da PSP poderia determinar essa informação com rigor.

Mais do que a conduta profissional do oficial da PSP, as situações que nos foram reportadas e que motivaram uma cautelosa investigação do DIÁRIO ao longo do último mês a fim de comprovar as denúncias sem rosto, põem em causa a verticalidade policial dos procedimentos contra-ordenacionais, pois promover a caducidade das multas com intuito de favorecer terceiros é prática condenável, podendo configurar - se provado - crimes como corrupção, falsificação de documentos, tráfico de influência ou abuso de poder.

Infracção grave prescreveu

O primeiro caso reportado remonta há quase cinco anos. Um automóvel Audi, propriedade do comissário Roberto Fernandes e habitualmente conduzido pela mulher, foi detectado em excesso de velocidade na Rua 5 de Outubro. A infracção foi registada pela agente Elsa Marques e fotografada em radar às 16h15 do dia 30 de Agosto de 2005, era então Fernandes o comandante da Divisão de Investigação Criminal da PSP.

O rolo de fotografias, onde constam todas as viaturas interceptadas em excesso de velocidade, entre as quais o Audi, foi entregue na esquadra de trânsito. Determinar a inutilização do rolo significaria anular provavelmente dezenas de infracções ao Código da Estrada por excesso de velocidade.

A contra-ordenação foi lavrada em expediente com o número de processo 6F000940, correspondendo ao auto n.º 354702750. No entanto, só foi introduzida no sistema informático da PSP ao fim de seis meses: a 10 de Janeiro de 2006. Normalmente, as infracções ao Código de Estrada não demoram mais de duas a três semanas a serem 'descarregadas'.

A disposição infringida - condução em excesso de velocidade - previsto no artigo 28, n.º 1 do Código de Estrada, é uma infracção grave, punida com multa de 120 a 600 euros e sanção acessória de inibição de conduzir de 1 a 12 meses.

A aplicação da coima é competência da PSP, mas cabe à Direcção Regional dos Transportes Terrestres (DRTT) a aplicação da sanção acessória. Ora, segundo o DIÁRIO apurou, ao contrário dos trâmites legais, a infracção não chegou a migrar para a DRTT, acabando por ser arquivada a 1 de Setembro de 2007, pela Divisão de Trânsito do Funchal, na altura comandada pelo comissário Adelino Pimenta.

O processo prescreveu ao fim de dois anos, acabando a infracção por ser arquivada sem haver lugar a pagamento de multa (com o agravamento por despesas de processo) ou a aplicação de sanção de inibição de conduzir.

Instado pelo DIÁRIO, o comissário Roberto Fernandes alega que não se recorda deste processo, prescrito há já três anos. Já a denúncia anónima enviada à nossa redacção (e que desencadeou a nossa investigação) não tem dúvidas ao afirmar que "o auto foi escondido com o propósito de deixar ultrapassar os prazos, ou seja, ultrapassar os dois anos que corresponde assim à sua prescrição, não havendo deste modo qualquer procedimento".

O arquivamento das contra-ordenações está previsto no artigo 188.º n.º 1 do Código de Estrada - "o procedimento por contra-ordenação rodoviária extingue-se por efeito da prescrição logo que, sobre a prática da contra-ordenação, tenham decorrido dois anos" - mas não pode acontecer quando há provas que autenticam a infracção ou quando estão identificados o veículo infractor e o proprietário como foi o caso.

Contrariedades no estacionamento

Caminho idêntico levou uma outra infracção ao trânsito, esta leve. O caso remonta a 28 de Dezembro de 2006, pelas 16h20, quando o mesmo Audi foi identificado na Rua Conde Canavial, Funchal, em situação de estacionamento irregular. Identificado pelo agente João Martins, através do processo n.º 7F018395, o auto de contra-ordenação com o n.º 365584282 só deu entrada no sistema informático seis meses depois: a 21 de Junho de 2007.

O denunciante anónimo argumenta que, pelo menos até à primeira semana de Fevereiro deste ano, a coima não tinha ainda sido paga voluntariamente, nem o auto seguiu os seus trâmites normais.

"Fizeram tudo ao contrário, deixaram prescrever e enviaram, em 19 de Setembro de 2008 para a DRTT. O que aconteceu é que esconderam na prateleira para ultrapassar os dois anos e só depois enviaram para a DRTT, sem qualquer procedimento". Uma prática condenável, pois o proprietário do carro e o seu condutor estavam devidamente identificados.

Confrontado telefonicamente na última quarta-feira, o comissário Roberto Fernandes contra-argumenta, fazendo prova de um recibo emitido pela DRTT, referente àquele auto, com data de pagamento a 20 de Março de 2009.

Estranho é que nessa data o processo já teria prescrito. Por esclarecer está também a cobrança de 30 euros. Esse é o valor correspondente à coima paga voluntariamente. Quando tal não acontece, a lei determina a cobrança de "valor máximo da infracção atingido 5 vezes" mais o valor inicial da coima, mais o pagamento das ajudas do processo interno na DRTT. A violação da infracção é clara no artigo 71 n.º 1 alínea d) do Código de Estrada: punição com coima de 30 a 150 euros.

Pouco claro é também o processamento contra-ordenacional de uma outra infracção por estacionamento abusivo em que foi encontrado o mesmo automóvel. A 5 de Fevereiro de 2009 foi autuado na Rua dos Ferreiros pela agente Carla Sousa. Neste caso, o processo (9F007354) até foi célere, sendo introduzido em sistema a 17 de Março do mesmo ano, (auto n.º 800480716).

Mas, volvido um ano, a coima continuava por pagar. Pelo menos até à primeira semana de Fevereiro - período a que se reporta a denúncia. "Pelo andar da carruagem, parece que vai ter idêntico procedimento como os outros autos", lê-se na carta.

Uma versão contrária apresenta o comissário da PSP, que exibe um recibo Multibanco datado do mesmo dia 17 de Março de 2009, cujo pagamento de 30 euros está endereçado à Secretaria Regional do Plano e Finanças. Porém, a notificação da PSP a que se reporta o recibo MB apresenta o campo referente à data (incerta) preenchido com zeros.

Para provar que não está acima da lei, o comissário apresenta uma outra notificação de coima por estacionamento à porta de uma garagem no Largo do Chafariz - esta infracção bem mais recente, datada de 30 de Março de 2010, às 14h50 - com carimbo da Esquadra de Trânsito: 'Pago'.

Sem Imposto de Circulação

Por esclarecer está ainda a circulação de dois veículos pertença do porta-voz da Polícia, sem Imposto Único de Circulação (IUC), sem daí resultar qualquer punição por parte das forças de segurança com competência de fiscalização: PSP e GNR.

Abril de 2009 era a data limite para pagamento do IUC do Audi, mas a guia de emissão viria a ser liquidada só em Outubro. Neste caso, foi ultrapassada a data limite em seis meses. A lei prevê a atribuição de coima, que foi imputada e paga, mas os agentes denunciantes não poupam a 'felicidade' de, neste período, o então comandante da Divisão Policial do Funchal nunca ter sido autuado por circular sem selo.

Mais grave é o caso do BMW que é usado diariamente pelo comissário nas deslocações para o Comando Regional da PSP. A data limite de pagamento do IUC estabelecia-se em 30 de Novembro de 2009, mas em meados de Março último a nota de cobrança (183,20 euros) continuava por liquidar.

A falta contributiva às Finanças não passou despercebida aos pessoal do trânsito. "Qual é a moral dos agentes irem para as ruas multar as pessoas, quando têm um 'big boss' que, para além de não pagar multas e imposto, não dá o exemplo?", expôs a mesma carta anónima.

Em situação idêntica está um motociclo do qual o comissário é proprietário. O imposto deveria ter sido pago em Agosto do ano passado. A guia de emissão foi solicitada a 25 de Agosto, mas os 52,30 euros não chegaram a ser liquidados. "Estamos em Fevereiro de 2010, ainda não procedeu ao pagamento de 2009, tendo por isso que pagar coima", conclui o denunciante.

Desconhece-se se o veículo de duas rodas é utilizado com frequência pelo proprietário ou outra pessoa, mas os polícias contactados pelo DIÁRIO confirmam que o comissário "no Verão entrava todos os dias no Comando da PSP com a mota". Sem selo.

"Ninguém está acima da lei"

Sobre a falta do IUC, tivemos o cuidado de ouvir, na última quarta-feira - por escrito e por telefone - o comissário, adjunto da Divisão Policial do Funchal, mas este optou por não debelar publicamente assuntos que considera pertencerem à sua esfera particular, remetendo-nos uma missiva onde esgrime a defesa, não do oficial de Polícia, mas do cidadão.

"O cidadão Roberto Fernandes encontra-se no pleno domínio das suas faculdades pessoais e civis, não possuindo qualquer imunidade ou regalia de excepção. Quer isto significar que, tal como o mais comum dos seus concidadãos, está sujeito às normas legais e demais regras socialmente instituídas em qualquer domínio de mera ordenação social, cível e criminal". Neste sentido, reitera que "ninguém está acima da lei".

Lembrando a sua condição de polícia, acrescenta ainda: "Tratando-se de um cidadão que desempenha funções de autoridade pública, junto de uma reputada instituição policial, encontra-se ainda sujeito a deveres e obrigações especiais que nunca repudiou, aceitando-as como ónus necessário do serviço que presta à comunidade portuguesa, honra e privilégio esse que dificilmente a mediocridade e anonimato de delatores sem rosto alguma vez afectarão, seja por que via for".

Jorge Cabrita remete caso das prescrições para a DRTT: Comandante abre processo de averiguações; se houver suspeitas vai tudo para o MP

O Comando Regional da PSP entende que os esclarecimentos atinentes à matéria de prescrição das contra-ordenações rodoviárias devem ser dirigidos à entidade competente, ou seja, à Direcção Regional de Transportes Terrestres.

Jorge Cabrita lembrou que, nos termos do artigo 169º do Código de Estrada, o processamento das contra-ordenações rodoviárias compete, na Madeira, à DRTT, "entidade esta, que é competente para a aplicação das coimas correspondentes às contra-ordenações leves e às coimas e sanções acessórias correspondentes às contra-ordenações graves". O intendente, que falava ao DIÁRIO na última quarta-feira, antes dos feriados do fim-de-semana pascal, sublinhou que "compete, assim, àqueles serviços regionais a instrução dos processos de contra-ordenação, cabendo à PSP com ela colaborar, sempre que solicitado".

Porém, Jorge Cabrita admite abrir um processo de averiguações e dar conhecimento do caso ao Ministério Público: "O Comando da PSP não deixará de averiguar formalmente e de remeter para os foros competentes, quaisquer condutas que possam suscitar ilícito disciplinar, ou outros, seja qual for o posto ou posição hierárquica dos elementos visados, uma vez que haja indícios que sustentem desvios nas referidas condutas."

O comandante sublinha ainda que a intervenção nos procedimentos contra-ordenacionais no Comando e na esquadra de trânsito, "é transparente, sendo a interrupção do procedimento contra-ordenacional sujeito a normas rígidas", "que não permitem discricionariedade por nenhum dos extractos hierárquicos incluindo o seu comandante". Diz ainda que "é realizada nos termos da lei, sendo as reclamações, autos ou simples expediente de notícia de infracção rodoviária, enviado por este Comando, para apreciação e decisão por entidade externa à PSP, em concreto a entidade competente em razão da matéria, a DRTT".

Percurso legal de uma infracção ao código da estrada

1 Quando um condutor pratica uma infracção, pode ser punido com coima e com sanção acessória, caso seja considerado contra-ordenação grave e muito grave (n.º 1 do art. 138 do CE).

2 O infractor deve levantar guias para pagamento da coima, no prazo máximo de 15 dias úteis, podendo efectuar pagamento voluntário pelo mínimo: na PSP ou na CGD (art. 172 n.o 1, 2, 3, 4 e 5).

3 Quando o infractor não paga as coimas voluntariamente, são apreendidos provisoriamente os documentos, devendo ser emitida guia de substituição válida por 6 meses (art. 173) ou por 15 dias (art. 174º).

4 Nos primeiros 5 dias úteis, o arguido pode apresentar prova do pagamento da coima ou da prestação de depósito efectuado no prazo máximo de 48 horas para reaver os documentos apreendidos.

5 No 6.º dia útil após a apreensão, caso não tenha sido feita prova do pagamento da coima ou da prestação de depósito, os documentos são enviados à DRTT acompanhados de fotocópia do auto da apreensão.

6 Findo o prazo de revalidação das guias, o auto é remetido à DRTT e, eventualmente, ao poder judicial, dependendo do tipo de infracção e da sua gravidade.

7 Caso não seja identificado o condutor no prazo acima referido, a PSP, remete para a residência do proprietário da viatura, mediante 'Notificação de Infracção' (176º do CE) por carta registada.

8 Se a situação não for regularizada, a PSP levanta o auto e constitui arguido (art. 170) para que proceda ao pagamento no prazo de 15 dias úteis (art. 171).

9 Findo este prazo o auto será remetido inicialmente para a DRTT, pagando o valor máximo da infracção atingido 5 vezes mais o valor inicial da coima, mais o pagamento das ajudas do processo interno na DRTT.

10 Mesmo tendo pago voluntariamente, o visado pode contestar a multa e a inibição de conduzir (n.º 4 do art. 175) à DRTT.
Ricardo Duarte Freitas

1 comentário:

  1. Movimento anti-oficiais da PSP6 de abril de 2010 às 10:12

    Sim Senhor!Os "donos" da moral e da razão são afinal os piores. Vamos rezar para que este caso não fique apenas pelos jornais e que o Senhor Infractor seja exemplarmente condenado. Assim espero.

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