Há processos por infracção ao Código de Estrada que ficam retidos na gaveta da Divisão de Trânsito da Polícia de Segurança Pública (PSP) até prescreverem, acabando arquivados sem daí resultar a cobrança de coimas e a aplicação de sanções acessórias. Em causa estão disparidades na cobrança do cumprimento das normas e da legalidade democrática, a favor de terceiros com cargos, estatutos ou posições sociais influentes. A prescrição dos procedimentos contra-ordenacionais é um assunto há muito falado, mas só agora é tornado público por alegadamente ter favorecido um oficial da PSP. A indignação partiu de quadros inconformados do Comando da Madeira. O caso denunciado por carta anónima chegou à nossa redacção em meados de Fevereiro e põe a descoberto infracções ao Código de Estrada que, embora fossem registadas pelos agentes e dessem entrada na Divisão de Trânsito, não seguiram os trâmites processuais previstos na lei. Um dos pretensos beneficiados foi o comissário Roberto Fernandes, actual porta-voz da PSP e adjunto da Divisão Policial do Funchal. Mas há outros nomes influentes dentro e fora da estrutura policial que são apontados neste conluio, numa rede de tráfico de influências. Contudo, isso é algo que não conseguimos confirmar, pois só uma auditoria ou inspecção pelo IGAI aos procedimentos contra-ordenacionais da PSP poderia determinar essa informação com rigor. Mais do que a conduta profissional do oficial da PSP, as situações que nos foram reportadas e que motivaram uma cautelosa investigação do DIÁRIO ao longo do último mês a fim de comprovar as denúncias sem rosto, põem em causa a verticalidade policial dos procedimentos contra-ordenacionais, pois promover a caducidade das multas com intuito de favorecer terceiros é prática condenável, podendo configurar - se provado - crimes como corrupção, falsificação de documentos, tráfico de influência ou abuso de poder. Infracção grave prescreveu O primeiro caso reportado remonta há quase cinco anos. Um automóvel Audi, propriedade do comissário Roberto Fernandes e habitualmente conduzido pela mulher, foi detectado em excesso de velocidade na Rua 5 de Outubro. A infracção foi registada pela agente Elsa Marques e fotografada em radar às 16h15 do dia 30 de Agosto de 2005, era então Fernandes o comandante da Divisão de Investigação Criminal da PSP. O rolo de fotografias, onde constam todas as viaturas interceptadas em excesso de velocidade, entre as quais o Audi, foi entregue na esquadra de trânsito. Determinar a inutilização do rolo significaria anular provavelmente dezenas de infracções ao Código da Estrada por excesso de velocidade. A contra-ordenação foi lavrada em expediente com o número de processo 6F000940, correspondendo ao auto n.º 354702750. No entanto, só foi introduzida no sistema informático da PSP ao fim de seis meses: a 10 de Janeiro de 2006. Normalmente, as infracções ao Código de Estrada não demoram mais de duas a três semanas a serem 'descarregadas'. A disposição infringida - condução em excesso de velocidade - previsto no artigo 28, n.º 1 do Código de Estrada, é uma infracção grave, punida com multa de 120 a 600 euros e sanção acessória de inibição de conduzir de 1 a 12 meses. A aplicação da coima é competência da PSP, mas cabe à Direcção Regional dos Transportes Terrestres (DRTT) a aplicação da sanção acessória. Ora, segundo o DIÁRIO apurou, ao contrário dos trâmites legais, a infracção não chegou a migrar para a DRTT, acabando por ser arquivada a 1 de Setembro de 2007, pela Divisão de Trânsito do Funchal, na altura comandada pelo comissário Adelino Pimenta. O processo prescreveu ao fim de dois anos, acabando a infracção por ser arquivada sem haver lugar a pagamento de multa (com o agravamento por despesas de processo) ou a aplicação de sanção de inibição de conduzir. Instado pelo DIÁRIO, o comissário Roberto Fernandes alega que não se recorda deste processo, prescrito há já três anos. Já a denúncia anónima enviada à nossa redacção (e que desencadeou a nossa investigação) não tem dúvidas ao afirmar que "o auto foi escondido com o propósito de deixar ultrapassar os prazos, ou seja, ultrapassar os dois anos que corresponde assim à sua prescrição, não havendo deste modo qualquer procedimento". O arquivamento das contra-ordenações está previsto no artigo 188.º n.º 1 do Código de Estrada - "o procedimento por contra-ordenação rodoviária extingue-se por efeito da prescrição logo que, sobre a prática da contra-ordenação, tenham decorrido dois anos" - mas não pode acontecer quando há provas que autenticam a infracção ou quando estão identificados o veículo infractor e o proprietário como foi o caso. Contrariedades no estacionamento Caminho idêntico levou uma outra infracção ao trânsito, esta leve. O caso remonta a 28 de Dezembro de 2006, pelas 16h20, quando o mesmo Audi foi identificado na Rua Conde Canavial, Funchal, em situação de estacionamento irregular. Identificado pelo agente João Martins, através do processo n.º 7F018395, o auto de contra-ordenação com o n.º 365584282 só deu entrada no sistema informático seis meses depois: a 21 de Junho de 2007. O denunciante anónimo argumenta que, pelo menos até à primeira semana de Fevereiro deste ano, a coima não tinha ainda sido paga voluntariamente, nem o auto seguiu os seus trâmites normais. "Fizeram tudo ao contrário, deixaram prescrever e enviaram, em 19 de Setembro de 2008 para a DRTT. O que aconteceu é que esconderam na prateleira para ultrapassar os dois anos e só depois enviaram para a DRTT, sem qualquer procedimento". Uma prática condenável, pois o proprietário do carro e o seu condutor estavam devidamente identificados. Confrontado telefonicamente na última quarta-feira, o comissário Roberto Fernandes contra-argumenta, fazendo prova de um recibo emitido pela DRTT, referente àquele auto, com data de pagamento a 20 de Março de 2009. Estranho é que nessa data o processo já teria prescrito. Por esclarecer está também a cobrança de 30 euros. Esse é o valor correspondente à coima paga voluntariamente. Quando tal não acontece, a lei determina a cobrança de "valor máximo da infracção atingido 5 vezes" mais o valor inicial da coima, mais o pagamento das ajudas do processo interno na DRTT. A violação da infracção é clara no artigo 71 n.º 1 alínea d) do Código de Estrada: punição com coima de 30 a 150 euros. Pouco claro é também o processamento contra-ordenacional de uma outra infracção por estacionamento abusivo em que foi encontrado o mesmo automóvel. A 5 de Fevereiro de 2009 foi autuado na Rua dos Ferreiros pela agente Carla Sousa. Neste caso, o processo (9F007354) até foi célere, sendo introduzido em sistema a 17 de Março do mesmo ano, (auto n.º 800480716). Mas, volvido um ano, a coima continuava por pagar. Pelo menos até à primeira semana de Fevereiro - período a que se reporta a denúncia. "Pelo andar da carruagem, parece que vai ter idêntico procedimento como os outros autos", lê-se na carta. Uma versão contrária apresenta o comissário da PSP, que exibe um recibo Multibanco datado do mesmo dia 17 de Março de 2009, cujo pagamento de 30 euros está endereçado à Secretaria Regional do Plano e Finanças. Porém, a notificação da PSP a que se reporta o recibo MB apresenta o campo referente à data (incerta) preenchido com zeros. Para provar que não está acima da lei, o comissário apresenta uma outra notificação de coima por estacionamento à porta de uma garagem no Largo do Chafariz - esta infracção bem mais recente, datada de 30 de Março de 2010, às 14h50 - com carimbo da Esquadra de Trânsito: 'Pago'. Sem Imposto de Circulação Por esclarecer está ainda a circulação de dois veículos pertença do porta-voz da Polícia, sem Imposto Único de Circulação (IUC), sem daí resultar qualquer punição por parte das forças de segurança com competência de fiscalização: PSP e GNR. Abril de 2009 era a data limite para pagamento do IUC do Audi, mas a guia de emissão viria a ser liquidada só em Outubro. Neste caso, foi ultrapassada a data limite em seis meses. A lei prevê a atribuição de coima, que foi imputada e paga, mas os agentes denunciantes não poupam a 'felicidade' de, neste período, o então comandante da Divisão Policial do Funchal nunca ter sido autuado por circular sem selo. Mais grave é o caso do BMW que é usado diariamente pelo comissário nas deslocações para o Comando Regional da PSP. A data limite de pagamento do IUC estabelecia-se em 30 de Novembro de 2009, mas em meados de Março último a nota de cobrança (183,20 euros) continuava por liquidar. A falta contributiva às Finanças não passou despercebida aos pessoal do trânsito. "Qual é a moral dos agentes irem para as ruas multar as pessoas, quando têm um 'big boss' que, para além de não pagar multas e imposto, não dá o exemplo?", expôs a mesma carta anónima. Em situação idêntica está um motociclo do qual o comissário é proprietário. O imposto deveria ter sido pago em Agosto do ano passado. A guia de emissão foi solicitada a 25 de Agosto, mas os 52,30 euros não chegaram a ser liquidados. "Estamos em Fevereiro de 2010, ainda não procedeu ao pagamento de 2009, tendo por isso que pagar coima", conclui o denunciante. Desconhece-se se o veículo de duas rodas é utilizado com frequência pelo proprietário ou outra pessoa, mas os polícias contactados pelo DIÁRIO confirmam que o comissário "no Verão entrava todos os dias no Comando da PSP com a mota". Sem selo. "Ninguém está acima da lei" Sobre a falta do IUC, tivemos o cuidado de ouvir, na última quarta-feira - por escrito e por telefone - o comissário, adjunto da Divisão Policial do Funchal, mas este optou por não debelar publicamente assuntos que considera pertencerem à sua esfera particular, remetendo-nos uma missiva onde esgrime a defesa, não do oficial de Polícia, mas do cidadão. "O cidadão Roberto Fernandes encontra-se no pleno domínio das suas faculdades pessoais e civis, não possuindo qualquer imunidade ou regalia de excepção. Quer isto significar que, tal como o mais comum dos seus concidadãos, está sujeito às normas legais e demais regras socialmente instituídas em qualquer domínio de mera ordenação social, cível e criminal". Neste sentido, reitera que "ninguém está acima da lei". Lembrando a sua condição de polícia, acrescenta ainda: "Tratando-se de um cidadão que desempenha funções de autoridade pública, junto de uma reputada instituição policial, encontra-se ainda sujeito a deveres e obrigações especiais que nunca repudiou, aceitando-as como ónus necessário do serviço que presta à comunidade portuguesa, honra e privilégio esse que dificilmente a mediocridade e anonimato de delatores sem rosto alguma vez afectarão, seja por que via for". Jorge Cabrita remete caso das prescrições para a DRTT: Comandante abre processo de averiguações; se houver suspeitas vai tudo para o MP O Comando Regional da PSP entende que os esclarecimentos atinentes à matéria de prescrição das contra-ordenações rodoviárias devem ser dirigidos à entidade competente, ou seja, à Direcção Regional de Transportes Terrestres. Jorge Cabrita lembrou que, nos termos do artigo 169º do Código de Estrada, o processamento das contra-ordenações rodoviárias compete, na Madeira, à DRTT, "entidade esta, que é competente para a aplicação das coimas correspondentes às contra-ordenações leves e às coimas e sanções acessórias correspondentes às contra-ordenações graves". O intendente, que falava ao DIÁRIO na última quarta-feira, antes dos feriados do fim-de-semana pascal, sublinhou que "compete, assim, àqueles serviços regionais a instrução dos processos de contra-ordenação, cabendo à PSP com ela colaborar, sempre que solicitado". Porém, Jorge Cabrita admite abrir um processo de averiguações e dar conhecimento do caso ao Ministério Público: "O Comando da PSP não deixará de averiguar formalmente e de remeter para os foros competentes, quaisquer condutas que possam suscitar ilícito disciplinar, ou outros, seja qual for o posto ou posição hierárquica dos elementos visados, uma vez que haja indícios que sustentem desvios nas referidas condutas." O comandante sublinha ainda que a intervenção nos procedimentos contra-ordenacionais no Comando e na esquadra de trânsito, "é transparente, sendo a interrupção do procedimento contra-ordenacional sujeito a normas rígidas", "que não permitem discricionariedade por nenhum dos extractos hierárquicos incluindo o seu comandante". Diz ainda que "é realizada nos termos da lei, sendo as reclamações, autos ou simples expediente de notícia de infracção rodoviária, enviado por este Comando, para apreciação e decisão por entidade externa à PSP, em concreto a entidade competente em razão da matéria, a DRTT". Percurso legal de uma infracção ao código da estrada 1 Quando um condutor pratica uma infracção, pode ser punido com coima e com sanção acessória, caso seja considerado contra-ordenação grave e muito grave (n.º 1 do art. 138 do CE). 2 O infractor deve levantar guias para pagamento da coima, no prazo máximo de 15 dias úteis, podendo efectuar pagamento voluntário pelo mínimo: na PSP ou na CGD (art. 172 n.o 1, 2, 3, 4 e 5). 3 Quando o infractor não paga as coimas voluntariamente, são apreendidos provisoriamente os documentos, devendo ser emitida guia de substituição válida por 6 meses (art. 173) ou por 15 dias (art. 174º). 4 Nos primeiros 5 dias úteis, o arguido pode apresentar prova do pagamento da coima ou da prestação de depósito efectuado no prazo máximo de 48 horas para reaver os documentos apreendidos. 5 No 6.º dia útil após a apreensão, caso não tenha sido feita prova do pagamento da coima ou da prestação de depósito, os documentos são enviados à DRTT acompanhados de fotocópia do auto da apreensão. 6 Findo o prazo de revalidação das guias, o auto é remetido à DRTT e, eventualmente, ao poder judicial, dependendo do tipo de infracção e da sua gravidade. 7 Caso não seja identificado o condutor no prazo acima referido, a PSP, remete para a residência do proprietário da viatura, mediante 'Notificação de Infracção' (176º do CE) por carta registada. 8 Se a situação não for regularizada, a PSP levanta o auto e constitui arguido (art. 170) para que proceda ao pagamento no prazo de 15 dias úteis (art. 171). 9 Findo este prazo o auto será remetido inicialmente para a DRTT, pagando o valor máximo da infracção atingido 5 vezes mais o valor inicial da coima, mais o pagamento das ajudas do processo interno na DRTT. 10 Mesmo tendo pago voluntariamente, o visado pode contestar a multa e a inibição de conduzir (n.º 4 do art. 175) à DRTT. |
Ricardo Duarte Freitas |
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Há 1 semana
Sim Senhor!Os "donos" da moral e da razão são afinal os piores. Vamos rezar para que este caso não fique apenas pelos jornais e que o Senhor Infractor seja exemplarmente condenado. Assim espero.
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